Os deslocamentos populacionais no longo século XIX constituem o eixo central desta proposta de evento. Nele se inserem os exílios políticos, as migrações socioeconômicas e as experiências a bordo dos navios de indivíduos que cruzavam oceanos por motivos diversos. Os fluxos migratórios com origem em Portugal e seu império e com destino ao Brasil, predominante mas não exclusivamente abordados nesta proposta, serão examinados dentro da perspectiva mais ampla da diversidade de trânsitos populacionais ocorridos no período em questão.
Se as revoluções liberais e a contrarrevolução constituem chave fundamental para interpretar a superação do Império Luso-Brasileiro, não se pode perder de vista o contexto mais amplo do desenvolvimento do capitalismo global e da modernidade política em que se deram os trânsitos e as dinâmicas populacionais do oitocentos. Quer isso dizer que esses deslocamentos, diversos, eram compostos por indivíduos que buscavam liberdade, segurança e melhores condições de vida.
A proposta visa reunir especialistas de diversas regiões do Brasil e de outros países para debater: (i) a dinâmica desses deslocamentos e as relações entre exílios políticos e migrações socioeconômicas; (ii) as experiências de indivíduos com origens e status distintos a bordo dos navios ou nas cidades de destino e (iii) a interação entre livres, semi-livres e escravizados decorrente dos deslocamentos intensificados pela Era das Revoluções; (iv) as estratégias adotadas para a construção de redes de solidariedade; (v) a constituição de formas de sociabilidade; (vi) a criação de identidades étnico-raciais; (vii) e os conflitos e as lutas por direitos nas sociedades de acolhimento.
O objetivo é (re)visitar essas questões à luz de contribuições historiográficas que enfatizam a pluralidade de bagagens e experiências a bordo dos navios, nas cidades portuárias e no mundo do trabalho. A história das navegações marítimas, envolvendo negócios e negociantes, é parte essencial do tema das migrações, e não apenas pelo fato mais óbvio de permitir o trânsito de pessoas. Como bem ressaltaram Peter Linebaugh e Marcus Rediker (2012), os navios constituíram um microcosmo das sociedades que emergiram da formação e expansão do capitalismo global. Suas tripulações reuniam trabalhadores livres, semi-livres, engajados, escravizados, soldados e marinheiros, reproduzindo hierarquias multiétnicas e multirraciais, essenciais à constituição da classe trabalhadora, mas também encetando novas formas de solidariedade e práticas de resistência.
Não foi apenas a bordo dos navios que circularam ideias e se misturaram trabalhadores com origens e status variados. Como mostram Pepijn Brandon, Niklas Frykman e Pernille Roge (2019), as cidades portuárias devem ser entendidas como pontos de conexão entre distantes zonas produtivas nas quais se concentravam trabalhadores assalariados livres e semi-livres, escravizados, soldados e marinheiros cruciais para a construção e manutenção das estruturas que permitiram o desenvolvimento do capitalismo global e a circulação de ideais e outras experiências de liberdade. Por isso, cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Recife, São Luís e Belém, assim como Havana ou Demerara, são espaços privilegiados para a análise das interações de trabalhadores subjugados a diferentes formas de exploração e com variadas concepções de cidadania e liberdade.
As abordagens supracitadas vão ao encontro de estudos que problematizam a distinção estanque entre trabalho escravo e trabalho livre. Historiadores que trabalham na perspectiva da História Global do Trabalho evidenciam que o desenvolvimento capitalista contou com uma miríade de formas de coação que empurraram os indivíduos ao trabalho disciplinado e extenuante nas plantations ou nas fábricas. Nas sociedades escravistas ou pós-escravistas do continente americano, indivíduos livres ou semi-livres engajados na Europa, na Ásia ou na África trabalharam ao lado de escravizados ou em trabalhos que, antes, eram reservados a esses. O convívio gerou formas de solidariedade, mas também provocou rivalidades que contribuíram para a configuração de hierarquias raciais fundamentais ao avanço do capitalismo.
O debate aqui proposto enfrenta desafios ainda urgentes. As desigualdades econômicas e raciais persistem; as ‘crises migratórias’ e de ‘refugiados’ de guerra ou de desastres ambientais parecem longe de se resolverem. Refletir sobre a relação entre deslocamentos populacionais, experiências transnacionais, multiétnicas e multirracias e o desenvolvimento do capitalismo e da modernidade em perspectiva histórica é fundamental ao enfrentamento de problemas latentes na ordem global em que vivemos.